''Enquanto trabalho com ar de moça séria e ajuizada, minha cabeça parece uma metralhadora giratória, os pensamentos sendo disparados a esmo: digo ou não digo; fico ou não fico; tento ou não tento? Quem de mim é a sã e quem é a louca, por que ontem eu não estava a fim e hoje estou tão apaixonada, como estarei raciocinando daqui a duas horas, em linha reta ou por vias tortas? Alguém bate na porta interrompendo meus devaneios, é o zelador entregando a correspondência, eu agradeço e sorrio gentil, demonstrando minha perfeita sanidade. Que controle tenho eu sobre o que ainda não me aconteceu? E sobre o já acontecido, que segurança posso ter de que minha memória seja justa, de que minhas lembranças não tenham sido corrompidas? Quero e não quero a mesma coisa tantas vezes ao dia, alterno o sim e o não intimamente, tenho dúvidas impublicáveis, e ainda assim me visto com sobriedade, respondo meus e-mails e não cometo infrações de trânsito, sou confiável, sou uma doida. E essa constatação da demência que os dias nos impingem não seria lucidez das mais requintadas? É de pirar.''
Do livro: Coisas da Vida (Crônicas), de Martha Medeiros