Fiquei
triste com a escolha do cardeal Joseph Ratzinger para Papa. E sei que muitos dos
meus amigos católicos sentem e pensam o mesmo. Oficialmente os bispos não podem
se manifestar. São obrigados a silenciar os seus pensamentos. Um deles declarou
que é preciso estar preparados para surpresas. Na atual situação da Igreja só é
possível ter esperança se se acreditar em surpresas... Uma surpresa é algo
inesperado. O dito prelado exprimia, assim, de maneira transversal, a sua
esperança bruxoleante. Como quem espera um milagre que haverá de curar o
moribundo: pode haver surpresas...
Nessa
situação sou descrente. O passado do cardeal Ratzinger não me autoriza. Ele é um
homem das verdades absolutas e imutáveis. Não se pode esperar surpresas de quem
mora num mundo fora do tempo. Para quem habita a eternidade as coisas do tempo
não passam de equívocos a serem corrigidos.
Acontece, vez por outra, que coisas escritas no passado se prestam para
expressar o que se sente e pensa no presente. Faz alguns anos o papa deu a
público a encíclica “Dominus Jesu”. Nessa encíclica, onde se percebe entre as
linhas a presença do cardeal Ratzinger, ele afirmava que a Igreja Católica, por
oposição a todas as outras igrejas cristãs e religiões, possui a plenitude da
verdade divina. Somente ela. Sendo assim, ela é “mestra”. Sendo mestra nada tem
a aprender nem de outras religiões, nem de outras tradições cristãs, nem da
ciência e nem da história. Foi então que escrevi o artigo abaixo que transcrevo.
Ele exprime o que hoje sinto e o que hoje penso.
“Faz muitos anos subi ao alto da serra da Boa Esperança,
que eu só conhecia pela canção do Lamartine Babo. Lá de cima, vendo o vale que
se estendia abaixo, minha imaginação começou a pensar sobre milênios. Há quanto
tempo aquela montanha contemplava o vale? 10.000 anos? 100.000 anos? Aí ví uma
pedra branca, testemunha impassível da passagem do tempo, e resolvi trazê-la
para o meu escritório. Estou olhando para ela, nesse momento. Não mudou nada: o
mesmo branco rosa, os mesmos planos de clivagem, a mesma forma. Ficará assim,
indefinidamente. Pedras estão fora do tempo. O tempo lhes é uma realidade
exterior: o vento que sopra, a água que corre... São imutáveis, sempre as
mesmas, porque estão mortas.
Trouxe, junto com a pedra, umas plantinhas. Não vingaram. Estranharam a
minha casa. Plantas estranham o ambiente. Gostam ou não gostam dele. Verdejam ou
secam. Diferentes das pedras, que não estranham nada. Para a pedra tudo é igual.
Indiferentes ao mundo que as cerca. São sempre as mesmas. Porque estão mortas.
As plantas estão vivas. Porque estão vivas, as plantas estão sempre se
transformando numa outra coisa, diferente do que são. A vida não suporta a
mesmice. Nascer, crescer, envelhecer, reproduzir. Nenhuma planta é igual a si
mesma num momento subsequente de tempo. As pedras nem nascem, nem crescem, nem
envelhecem, nem se reproduzem. São eternas. São sempre as mesmas.
Mortas.
A
vida tem horror à mesmice. Um amigo, cientista especialista em bambus, me
emprestou um livro-arte maravilhoso sobre bambus. Aprendi que os bambus
florescem. Espantei-me. Eu nunca vi um bambu florido. Bambus, pelo que eu
pensava saber, se reproduzem assexuadamente: a planta mãe vai soltando brotos
iguais a si mesma. Mas o livro me disse que em períodos aproximados de cem anos,
uma mesma espécie de bambu floresce, no mundo inteiro. Depois da orgia sexual,
da troca de gens, da ejaculação de sementes, morrem os bambús. Os novos nascerão
das sementes. Não serão mais os mesmos que eram. Porque a semente é precisamente
isso: a vida se recusando a ser a mesma; a vida sabendo que, para continuar
viva, precisa “deixar de ser” o que era para “vir a ser” uma outra coisa. Se não
houver a mistura de gens, se a planta quiser ficar sempre a mesma, ela se
degenera. É preciso deixar de ser o mesmo e se transformar em outro. Vale para
as plantas a sabedoria evangélica: “Quem quiser salvar a sua vida perde-la-á”.
Quem permanecer o mesmo, morrerá. Ou se transformará numa pedra. Na procriação
existe sempre um pouco de morte. “Morre e transforma-te!”, dizia Goethe.
“Somente onde há sepulturas há também ressurreições”, dizia Nietzsche. “Se o
grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só. Mas se morrer dá muito
fruto”, dizia Jesus.
“Casca vazia. A cigarra cantou-se toda”. Haikai, se não me engano, de
Bachô. Antes da casca vazia a cigarra cantava canções subterrâneas - a vida
acontecia nas profundezas da terra. Mas, de repente, a vida tornou-se outra. A
cigarra subterrânea começou a sonhar sonhos de ar livre e vôos. Saiu da terra.
Sua casca não era mais capaz de suportar a vida que crescia dentro dela.
Arrebentou. E dela surgiu um outro ser, alado, pneumático. Nós, seres humanos,
somos como as cigarras. Só que nossas cascas são feitas com palavras. Crescendo
a vida, as cascas verbais se transformam em prisões. Têm de ser abandonadas,
para que a vida continue. “A serpente que não pode livrar-se de sua pele morre.
Assim são os espíritos que são impedidos de mudar suas opiniões. Eles cessam de
ser espírito”: aforismo de Nietzsche.
O
ecumenismo foi uma florescência de bambús: o desejo de fazer trocas, depois de
séculos, o desejo de transformar-se em semente, de cair na terra, de deixar de
ser o que era, para ser outra coisa. Possibilidade de “nascer de novo”: o velho
voltando a ser criança...
Mas
agora, o Vaticano reafirma a sua imutabilidade pétrea, sua mesmice, a eternidade
de sua casca de palavras: “ quod semper, ubique et ab omnibus creditum est”.
Entre Heráclito e Parmênidos, os teólogos oficiais católicos canonizaram
Parmênides... Entre a semente e a pedra, reafirmaram a pedra. Os bambus estão
proibidos de florir. Para que florir? É desnecessário. A Igreja possui a
verdade toda. Não precisa dos outros. Proibido está o jogo de trocar sementes.
Diálogo, só para que os outros sejam convertidos à sua verdade. Por que ouvir o
outro, se possuo a verdade toda? Por que permitir que o outro fale, se aquilo
que ele fala só pode ser mentira? Todos os que pretendem possuir a verdade
estão condenados a ser inquisidores. Assim, sobre todas as sementes se coloca a
maldição do silêncio, obsequioso...
Num
pequeno lugar do sul de Minas, Pocinhos do Rio Verde, há um pico de pedra bruta,
a “Pedra Branca”. Para se chegar ao alto passa-se por um bosque com regatos e
poços de água cristalina. Saindo do bosque, é a pedra bruta, trabalhada pelo
vento e pela água, através dos milênios. Triunfo da pedra? Em pedras não se
plantam flores. A despeito disto a vida foi colocando matéria orgânica nas
gretas e depressões. E o que se vê é um jardim: musgos, orquídeas, bromélias,
avencas. Fosse a pedra só, e seria desolação, deserto. Mas a vida cresceu sobre
a pedra – e vieram os pássaros, as borboletas, as abelhas, os pequenos animais.
Coitada da pedra! É inútil reclamar. A vida e a beleza crescem sobre ela, a
despeito da sua mesmice pétrea. As sementes – frágeis - são mais fortes que a
pedra – dura.
Compreendi, então, coisa que nunca havia compreendido: as razões por que
a Igreja Católica havia escolhido para si mesma o símbolo “Petrus” – “tu és
pedra”... De fato, ela é pedra. Casca de cigarra sobre o tronco da
árvore que continua a afirmar-se a si mesma, a viver de memórias da vida que foi
um dia e que agora é morte. Não se dá conta de que a vida saiu e voou.
Compreendi, também, as razões para a sua dificuldade em lidar com tudo que
seja semente – “semen” – o líquido do prazer que faz com que a vida nasça
outra.
Na
estória de Ló e sua mulher, fugindo de Gomorra, está dito que Deus os advertiu a
não olharem para trás. A mulher de Ló desobedeceu. Olhou para trás.
Transformou-se numa estátua, pedra de sal. O vento e a chuva levaram o sal. A
estátua desapareceu. Essa é a tragédia das pedras: pensam ser eternas. Não sabem
que são sal. O tempo, água, faz o seu trabalho. A areia da praia um dia foi
pedra...”
Mas, a
despeito da pedra, as plantas continuam a nascer, crescer, florescer...
Grande Rubem Alves!
Cada um sabe qual é a melhor religião para si. O mais importante é respeitarmos essa decisão, pois os caminhos são diferentes, mas o destino será o mesmo para todos - a busca de Deus!