Alguma dura experiência me ensinou que nem sempre a vida é o bem supremo: o bem supremo seria uma vida em que, em qualquer idade, houvesse espaço para afetos e projetos.
Mesmo na avançada velhice, havendo exercício de ternura e algum desejo – ainda que admirar a paisagem pela janela –, a vida valeria a pena.
Para que não pensem que meu olhar otimista ignora o lado da sombra, relato aqui um pouco das minhas inúteis e profundamente tristes visitas a uma velha dama, para quem há vários anos me tornei apenas isso: uma desconhecida que está de passagem.
Primeiro eu a encontrava em seu apartamento com os móveis pessoais e objetos de antigamente. Depois passei a vê-la no quarto da clínica onde recebe cuidados que em casa já era impossível dar. Seu universo reduzira-se ao mundo interior: ali comemorava quinze anos, ali era noiva ou tinha um bebê.
Geralmente ostentava um sereno ar de devaneio; em certas horas dialogava enfaticamente com quem só ela podia ver.
Mais bem-humorada na alienação do que nos últimos anos de lucidez ameaçada, que eventualmente a assustava muito:
– Você acha que eu estou ficando doida?
– Claro que não, mas que bobagem. Todo mundo às vezes se esquece, ou faz qualquer coisa que depois parece esquisita.
Mesmo na clínica, em certos momentos parecia a elegante anfitriã que um dia fora: “Você quer um chá?”, perguntava duas, cinco, dez vezes, não por insistência mas porque ao indagar já o esquecia. Era um lampejo da que outrora recebia amigos na sua sala entre velhos tapetes persas e vasos de cristal onde floresciam como requintadas esculturas as inesquecíveis rosas do seu jardim, de nomes hieráticos e belos.
No começo me reconhecia, para logo me confundir com outras pessoas; depois nunca mais percebeu quem eu era. O discreto quarto de agora e a casa de outros tempos fundiram-se, primeiro numa paisagem esfumada, e nos últimos anos em praticamente nada. Limbo.
Embora dominada pela enfermidade que lhe trava cérebro e corpo, ela resiste ao tempo e ao meu desejo de ao menos mais algum contato – resiste até mesmo à morte.
Às vezes eu a pressinto, a Senhora Morte, à espreita num canto do aposento. Preguiçosa ou cruel, lixa as longas unhas roxas e cobre a cara com seus cabelos brancos de melancólica Rapunzel. Tem tempo, sabe esperar – espera demais.
Aconchegada na sua cápsula do tempo, da última vez que estive com a velha dama, ela, que há muito não falava, entreabriu os olhos e disse baixinho para si mesma, para alguém – para ninguém:
– Que bom estar assim, tão leve e tão jovem.
E voltou a enrolar-se no xale do seu enigma.
Um dia finalmente a Senhora Morte há de se compadecer: sem dor nem alarde soprará a chamazinha tênue, fechando a última porta desse corredor demasiado, e levará consigo essa que apenas perdura.
Mas o riso alegre, o passo enérgico, o perfume, a voz – e aquelas rosas – permanecerão comigo: imagens inapagáveis de quem na verdade já partiu, mesmo que ainda não tenham baixado todas as cortinas.
Lya Luft, do livro Pensar é Transgredir