A terapeuta de casais diz que o mito de que marido e mulher são metades que se completam só atrapalha o casamento.Terapeuta de casais há mais de trinta anos, a psicóloga paulista Lidia Rosenberg Aratangy, 66 anos, não tem uma receita para o casamento duradouro e feliz. "Adoraria ter", diz, ironizando a altíssima improbabilidade desse conceito. Mas, apoiada em sua vasta experiência de testemunha direta dos labirintos conjugais, amealhou conselhos, opiniões e observações muito práticos e diretos, agora reunidos no livro O Anel que Tu Me Deste – O Casamento no Divã, uma espécie de manual para a preservação do matrimônio duradouro, essa instituição em extinção. Sua experiência, aliás, não é só profissional: Lidia é casada há 44 anos com o engenheiro Paulo Aratangy, 68, com quem tem quatro filhos. "Aprendemos a festejar as nossas diferenças, mesmo as maiores, como o fato de eu ser corintiana e ele torcedor do São Paulo", brinca. Psicóloga, pesquisadora e professora com mais de trinta livros publicados, que, para se desligar dos problemas próprios e alheios, faz balé clássico (uma hora e meia todo dia) e borda – hábito adquirido durante um tratamento de câncer, quinze anos atrás –, Lidia falou a VEJA sobre os desafios da vida em comum.
Veja – A senhora está casada há mais de quarenta anos com a mesma pessoa. Isso ajuda a entender de casamento e relacionamento amoroso?
Lidia – Eu não estou casada com a mesma pessoa e também não sou a mesma pessoa. Tanto eu como ele passamos por mudanças, evoluções e involuções. Em algumas coisas, eu era muito melhor há dez anos. Em outras, sou melhor hoje. Cada mudança traz um risco, mas o congelamento do vínculo é um risco maior. Aquela história de "ela é a outra metade da minha laranja" e "ele é minha cara-metade" não convence, porque duas meias caras podem fazer uma bela cara, duas meias laranjas podem fazer uma bela laranjada, mas duas meias pessoas não fazem um casal. Um casal precisa ter duas pessoas inteiras e diferentes uma da outra. Todo começo de relação amorosa carrega o mito do "fomos feitos um para o outro", e os dois ficam procurando as afinidades e negando as diferenças. Mas para continuar junto o casal precisa ultrapassar essa etapa e começar a reconhecer as diferenças. No meu consultório, quando uma parte do casal diz que a outra está diferente, sempre pergunto se isso é uma queixa ou um elogio. Deveria ser elogio, porque a pessoa está viva e não ficou imobilizada no que era antes.
Veja – Mas como se garante que isso vai acontecer? Não dá para combinar antes.
Lidia – Pois é, se combinasse seria mais fácil. Acaba sendo o não dito. O interdito, o que é proibido dizer e aparece nas entrelinhas. Você espera saber a opinião do outro para saber o que deve achar também. Esse é um dos riscos de uma relação longa. Cada um já sabe exatamente do que o outro gosta, os dois ficam viciados nas mesmas escolhas, nos mesmos restaurantes, nas mesmas conversas, e deixam as coisas no piloto automático. De repente, a relação se flagra repetitiva e enfadonha.
Veja – É possível, no casamento duradouro, marido e mulher não virarem pessoas chatas um para o outro?
Lidia – É, desde que cada um mantenha a própria vida. Ninguém deve abrir mão de todas as coisas de que gostava antes de se casar, para ficar só na estreita faixa dos interesses comuns. As mulheres, em geral, estão mais dispostas a abdicar do que gostam e terminam virando reflexo do marido. No princípio, ele pode até gostar, mas com o tempo vai olhar para o lado e ver a própria imagem. Aí ela vira uma paspalha, sem as qualidades que ele admirava.
Veja – Mas uma certa renúncia não é inevitável?
Lidia – É. Mas a melhor forma de não amargar a vida é: se resolver apostar em algo, aposte com toda a determinação. É muito difícil fazer escolhas como a de acompanhar o marido durante dois anos na Europa, com quatro filhos pequenos, e abrir mão do doutorado. Eu fiz isso e não me arrependi. Mas é preciso investir na escolha feita. Nós, mulheres, ainda temos a mania de valorizar sofrimento e dificuldade. Já vi mulher se queixando porque o marido comprou o presente que ela escolheu. Queria que ele fizesse um esforço maior para surpreendê-la.
Veja – É saudável discutir a relação?
Lidia – Dificilmente. O homem não fica à vontade, porque aprendeu desde pequeno que falar sobre sentimentos é coisa de mulher. Não podemos esquecer que os homens foram educados por mulheres. Aliás, me espanta que eles não usem isso em sua defesa com mais frequência. O filhote humano é mergulhado num caldo de progesterona desde que nasce até pelo menos a adolescência, com mãe, avó, tia, babá, professora. Só tem mulher em volta, e todas falam mais do que deveriam. Enquanto perdurar esse esquema, vamos ter homens com dificuldade de falar sobre sentimentos e mulheres se sentindo vitimizadas, sacrificadas. Depois da briga, ela quer conversar. Ele quer abraçar e transar. Na visão dele, conversar com o "inimigo" vai dar mais briga. Por isso, fazer as pazes, ouvir que a mulher gosta dele, para depois conversar, pode funcionar. Mas discutir a relação, na maioria das vezes, é um monólogo do tipo: "Senta aí que eu preciso te falar umas verdades". Eles correm disso. E fazem muito bem.
Veja – Quem mais procura ajuda no consultório, o homem ou a mulher?
Lidia – Quase sempre é a mulher, e a queixa mais comum é que "ele não fala". Outra queixa muito comum é falta de sexo. Quando o casal chega ao consultório, cada um espera que eu vá dizer que o outro é maluco e precisa de tratamento. Mas, na terapia de casal, o meu papel é o de tradutora e intérprete. Algumas vezes, a terapia serve para que o casal consiga ter uma separação digna.
Veja – Normalmente, o que se ouve no fim de um casamento é que a culpa, no fundo, é dos dois. Não existe culpa de um só?
Lidia – Para começo de conversa: alguém tem de ter culpa? A culpa não é de ninguém. No consultório, desmonto logo isso. Além de quererem que eu diga que o parceiro é louco, os casais que me procuram querem que eu diga de quem é a culpa. Culpa é coisa para onipotente, que tem o poder de fazer a coisa certa e não faz. Para nós, reles mortais, não existe isso. Há responsabilidades, isso sim, e conseguir separar uma coisa da outra é essencial.
Veja – Faz sentido tentar salvar o casamento por causa de filhos?
Lidia – Faz. Se você tem filho, não pode ver o casamento como algo descartável. O casal com filhos cria um vínculo permanente, casado ou não. Se houver uma separação, que ela aconteça com dignidade e cuidado. Agora, dizer que "nós só estamos juntos por causa dos filhos" é desculpa. Se o casal está junto, é porque tem mais coisa, além dos filhos.
Veja – Com todas as transformações do mundo e das sociedades, por que as pessoas continuam se casando?
Lidia – Para romper o véu da solidão. É para isso que a gente quer se casar. A relação amorosa aparece como a possibilidade de fugir do sentimento de solidão. Quando o casamento foi inventado, seu papel era decidir sobre questões de patrimônio e herança. Só a partir de meados do século XX as pessoas começaram a se casar por amor, com a livre escolha dos parceiros. Hoje, a gente se casa para ser feliz. Pena que a expectativa seja atrapalhada por mitos como o do par perfeito, o do diálogo permanente, o da transparência absoluta.
Veja – Transparência não é uma coisa positiva em qualquer tipo de relacionamento?
Lidia – Nós não somos transparentes nem para nós mesmos, como vamos ser para os outros? Ao contar tudo ao parceiro, a pessoa pode ser de uma crueldade absurda. Precisamos reformular o conceito de felicidade. É fundamental lembrar que frustração é parte da bagagem humana, não um desvio de rota. A gente tem de aprender a tolerar frustrações como parte inerente das nossas escolhas. Tem de aprender a tolerar imperfeições. Ser feliz não significa ficar o tempo todo em estado de graça, e sim ter um balanço favorável do momento e enxergar uma possibilidade de futuro.
Veja – Mas dá para resistir à tentação de saber tudo sobre o passado do cônjuge?
Lidia – Se cair nessa tentação, você precisa estar bem preparado para o que vai encontrar. E ainda pode não encontrar nada e deixar o outro mortalmente ferido por sua desconfiança. Só se deve perguntar quando se tem algo a fazer com a resposta. A relação tem de ser avaliada pela forma como a pessoa se sente nela, não pelas caixinhas fechadas.
Veja – Quando a paixão acaba, como fazer para que a relação continue?
Lidia – A paixão não acaba, e ponto final. Ela acaba e volta. É preciso estar atento, porque a paixão depende da surpresa. Por exemplo: há pouco tempo, vi a disposição e a felicidade do meu marido em ajudar a neta de 14 anos a entender matemática e me apaixonei de novo por ele. Casamento não é para preguiçoso nem para covarde. É preciso ter coragem de enfrentar mudanças e diferenças.
Veja – Por que, quase sempre, é preciso que surja uma terceira pessoa para a separação acontecer?
Lidia – Essa pessoa serve de catalisador. Se você está num relacionamento desgastado e difícil, nada mais renovador do que um amor novinho em folha. Às vezes, de fato, a outra pessoa reativa algo que estava mesmo morto e traz a coragem para dar o passo. Dificilmente, porém, essa terceira pessoa vai ser a parceira da nova relação, porque o novo vínculo está contaminado pelo anterior, que continua a servir de base.
Veja – Brigar de vez em quando faz bem?
Lidia – Ninguém precisa procurar briga, mas também não precisa fugir dela. Não se deve ter medo da divergência. Se o casamento for sólido, o casal tolera uma palavra atravessada de vez em quando. É falta, não é cartão amarelo. Da mesma forma, uma certa rotina é bem-vinda, porque permite que você não tenha de fazer escolhas o tempo todo.
Veja – A nova família de pai, mãe, mulher do pai, marido da mãe, quatro avós, quatro avôs, meios-irmãos para todo lado está sendo bem absorvida ou anda dando nó nas cabeças?
Lidia – Dá mais nó nos mais velhos, claro, que ainda estão presos a padrões e expectativas antigos. A nova família está sendo absorvida, mas atente para o gerúndio: ela reflete o fato de que a absorção ainda está em processo, lento e gradual. Com alguns percalços inevitáveis, as famílias estão aprendendo a lidar com as novas condições, já que elas são inevitáveis. Continua dando nós, mas estamos ficando bons em desfazê-los.
Veja – Quais são alguns dos mais extremos graus de infelicidade no casamento que passaram pelo seu consultório?
Lidia – Uma das situações mais marcantes, que aconteceu mais de uma vez, é a do casal que potencializava e iluminava o que o outro tinha de melhor e de pior, oscilando o tempo todo entre momentos de extrema paixão e outros de intensa agressão, tanto verbal quanto quebrando tudo em casa. Os dois viviam ou no paraíso ou no inferno. Só não conseguiam viver na Terra. Mas o caso mais extremo de infelicidade a que atendi foi o de um casal, junto havia quarenta anos, em que ela tinha câncer terminal. A morte ia separá-los e eu tive de acompanhar essa despedida. Ele sofria absurdamente. Foi quando eu constatei que "felizes para sempre" quer dizer fim. Entendi melhor por que as pessoas têm tanto medo da entrega amorosa. Quando dá certo, um vai ter de viver esse processo de perda.
Veja – A mágoa da infidelidade pode ser superada? A marca fica para sempre ou some com o tempo?
Lidia – Depende de como é o pacto do casal. Para alguns, é uma marca que nunca vai sumir. Aliás, medo da infidelidade a gente tem sempre, independentemente de ter acontecido algo ou não. É um fantasma. Ninguém tem garantia numa relação amorosa.
Veja – Ciúme atrapalha muito?
Lidia – Bom, ciúme é inevitável, uma emoção primária, humana. Quem tem umbigo tem ciúme, e isso não tem nada a ver com posse. Ciúme está relacionado àquele momento em que você, criança, está do lado de fora do quarto de seus pais e a porta está fechada. Tem a ver com esse sentimento de exclusão. Agora, no relacionamento amoroso, o ciúme é problema do ciumento e ele não pode jogar para cima do outro.
Veja – Por que a mulher tende a perdoar mais? Como costuma ser a reação de cada um?
Lidia – A mulher percebe a relação como sendo de borracha, maleável, que pode ser esticada ou encolhida. Já para o homem, em geral, é irreparável. A primeira reação dele é querer se separar, como se o casamento fosse um cristal que, ao quebrar, não tem mais conserto. No momento seguinte, porém, os dois podem mudar de ideia.
Veja – Quando é que se percebe que um casamento acabou?
Lidia – O casamento só acaba quando o ressentimento é mais forte que a esperança de ser feliz. A pessoa tem de parar e refletir se a mágoa é realmente grande. O amor tem muitos canais pelos quais o afeto pode se expressar. O sexo é, sem dúvida, um deles, mas existem vários outros, como ternura, cumplicidade, lealdade. Não é preciso usar calcinha vermelha nem mandar o marido se vestir de marinheiro.
Veja – A senhora está casada há mais de quarenta anos com a mesma pessoa. Isso ajuda a entender de casamento e relacionamento amoroso?
Lidia – Eu não estou casada com a mesma pessoa e também não sou a mesma pessoa. Tanto eu como ele passamos por mudanças, evoluções e involuções. Em algumas coisas, eu era muito melhor há dez anos. Em outras, sou melhor hoje. Cada mudança traz um risco, mas o congelamento do vínculo é um risco maior. Aquela história de "ela é a outra metade da minha laranja" e "ele é minha cara-metade" não convence, porque duas meias caras podem fazer uma bela cara, duas meias laranjas podem fazer uma bela laranjada, mas duas meias pessoas não fazem um casal. Um casal precisa ter duas pessoas inteiras e diferentes uma da outra. Todo começo de relação amorosa carrega o mito do "fomos feitos um para o outro", e os dois ficam procurando as afinidades e negando as diferenças. Mas para continuar junto o casal precisa ultrapassar essa etapa e começar a reconhecer as diferenças. No meu consultório, quando uma parte do casal diz que a outra está diferente, sempre pergunto se isso é uma queixa ou um elogio. Deveria ser elogio, porque a pessoa está viva e não ficou imobilizada no que era antes.
Veja – Mas como se garante que isso vai acontecer? Não dá para combinar antes.
Lidia – Pois é, se combinasse seria mais fácil. Acaba sendo o não dito. O interdito, o que é proibido dizer e aparece nas entrelinhas. Você espera saber a opinião do outro para saber o que deve achar também. Esse é um dos riscos de uma relação longa. Cada um já sabe exatamente do que o outro gosta, os dois ficam viciados nas mesmas escolhas, nos mesmos restaurantes, nas mesmas conversas, e deixam as coisas no piloto automático. De repente, a relação se flagra repetitiva e enfadonha.
Veja – É possível, no casamento duradouro, marido e mulher não virarem pessoas chatas um para o outro?
Lidia – É, desde que cada um mantenha a própria vida. Ninguém deve abrir mão de todas as coisas de que gostava antes de se casar, para ficar só na estreita faixa dos interesses comuns. As mulheres, em geral, estão mais dispostas a abdicar do que gostam e terminam virando reflexo do marido. No princípio, ele pode até gostar, mas com o tempo vai olhar para o lado e ver a própria imagem. Aí ela vira uma paspalha, sem as qualidades que ele admirava.
Veja – Mas uma certa renúncia não é inevitável?
Lidia – É. Mas a melhor forma de não amargar a vida é: se resolver apostar em algo, aposte com toda a determinação. É muito difícil fazer escolhas como a de acompanhar o marido durante dois anos na Europa, com quatro filhos pequenos, e abrir mão do doutorado. Eu fiz isso e não me arrependi. Mas é preciso investir na escolha feita. Nós, mulheres, ainda temos a mania de valorizar sofrimento e dificuldade. Já vi mulher se queixando porque o marido comprou o presente que ela escolheu. Queria que ele fizesse um esforço maior para surpreendê-la.
Veja – É saudável discutir a relação?
Lidia – Dificilmente. O homem não fica à vontade, porque aprendeu desde pequeno que falar sobre sentimentos é coisa de mulher. Não podemos esquecer que os homens foram educados por mulheres. Aliás, me espanta que eles não usem isso em sua defesa com mais frequência. O filhote humano é mergulhado num caldo de progesterona desde que nasce até pelo menos a adolescência, com mãe, avó, tia, babá, professora. Só tem mulher em volta, e todas falam mais do que deveriam. Enquanto perdurar esse esquema, vamos ter homens com dificuldade de falar sobre sentimentos e mulheres se sentindo vitimizadas, sacrificadas. Depois da briga, ela quer conversar. Ele quer abraçar e transar. Na visão dele, conversar com o "inimigo" vai dar mais briga. Por isso, fazer as pazes, ouvir que a mulher gosta dele, para depois conversar, pode funcionar. Mas discutir a relação, na maioria das vezes, é um monólogo do tipo: "Senta aí que eu preciso te falar umas verdades". Eles correm disso. E fazem muito bem.
Veja – Quem mais procura ajuda no consultório, o homem ou a mulher?
Lidia – Quase sempre é a mulher, e a queixa mais comum é que "ele não fala". Outra queixa muito comum é falta de sexo. Quando o casal chega ao consultório, cada um espera que eu vá dizer que o outro é maluco e precisa de tratamento. Mas, na terapia de casal, o meu papel é o de tradutora e intérprete. Algumas vezes, a terapia serve para que o casal consiga ter uma separação digna.
Veja – Normalmente, o que se ouve no fim de um casamento é que a culpa, no fundo, é dos dois. Não existe culpa de um só?
Lidia – Para começo de conversa: alguém tem de ter culpa? A culpa não é de ninguém. No consultório, desmonto logo isso. Além de quererem que eu diga que o parceiro é louco, os casais que me procuram querem que eu diga de quem é a culpa. Culpa é coisa para onipotente, que tem o poder de fazer a coisa certa e não faz. Para nós, reles mortais, não existe isso. Há responsabilidades, isso sim, e conseguir separar uma coisa da outra é essencial.
Veja – Faz sentido tentar salvar o casamento por causa de filhos?
Lidia – Faz. Se você tem filho, não pode ver o casamento como algo descartável. O casal com filhos cria um vínculo permanente, casado ou não. Se houver uma separação, que ela aconteça com dignidade e cuidado. Agora, dizer que "nós só estamos juntos por causa dos filhos" é desculpa. Se o casal está junto, é porque tem mais coisa, além dos filhos.
Veja – Com todas as transformações do mundo e das sociedades, por que as pessoas continuam se casando?
Lidia – Para romper o véu da solidão. É para isso que a gente quer se casar. A relação amorosa aparece como a possibilidade de fugir do sentimento de solidão. Quando o casamento foi inventado, seu papel era decidir sobre questões de patrimônio e herança. Só a partir de meados do século XX as pessoas começaram a se casar por amor, com a livre escolha dos parceiros. Hoje, a gente se casa para ser feliz. Pena que a expectativa seja atrapalhada por mitos como o do par perfeito, o do diálogo permanente, o da transparência absoluta.
Veja – Transparência não é uma coisa positiva em qualquer tipo de relacionamento?
Lidia – Nós não somos transparentes nem para nós mesmos, como vamos ser para os outros? Ao contar tudo ao parceiro, a pessoa pode ser de uma crueldade absurda. Precisamos reformular o conceito de felicidade. É fundamental lembrar que frustração é parte da bagagem humana, não um desvio de rota. A gente tem de aprender a tolerar frustrações como parte inerente das nossas escolhas. Tem de aprender a tolerar imperfeições. Ser feliz não significa ficar o tempo todo em estado de graça, e sim ter um balanço favorável do momento e enxergar uma possibilidade de futuro.
Veja – Mas dá para resistir à tentação de saber tudo sobre o passado do cônjuge?
Lidia – Se cair nessa tentação, você precisa estar bem preparado para o que vai encontrar. E ainda pode não encontrar nada e deixar o outro mortalmente ferido por sua desconfiança. Só se deve perguntar quando se tem algo a fazer com a resposta. A relação tem de ser avaliada pela forma como a pessoa se sente nela, não pelas caixinhas fechadas.
Veja – Quando a paixão acaba, como fazer para que a relação continue?
Lidia – A paixão não acaba, e ponto final. Ela acaba e volta. É preciso estar atento, porque a paixão depende da surpresa. Por exemplo: há pouco tempo, vi a disposição e a felicidade do meu marido em ajudar a neta de 14 anos a entender matemática e me apaixonei de novo por ele. Casamento não é para preguiçoso nem para covarde. É preciso ter coragem de enfrentar mudanças e diferenças.
Veja – Por que, quase sempre, é preciso que surja uma terceira pessoa para a separação acontecer?
Lidia – Essa pessoa serve de catalisador. Se você está num relacionamento desgastado e difícil, nada mais renovador do que um amor novinho em folha. Às vezes, de fato, a outra pessoa reativa algo que estava mesmo morto e traz a coragem para dar o passo. Dificilmente, porém, essa terceira pessoa vai ser a parceira da nova relação, porque o novo vínculo está contaminado pelo anterior, que continua a servir de base.
Veja – Brigar de vez em quando faz bem?
Lidia – Ninguém precisa procurar briga, mas também não precisa fugir dela. Não se deve ter medo da divergência. Se o casamento for sólido, o casal tolera uma palavra atravessada de vez em quando. É falta, não é cartão amarelo. Da mesma forma, uma certa rotina é bem-vinda, porque permite que você não tenha de fazer escolhas o tempo todo.
Veja – A nova família de pai, mãe, mulher do pai, marido da mãe, quatro avós, quatro avôs, meios-irmãos para todo lado está sendo bem absorvida ou anda dando nó nas cabeças?
Lidia – Dá mais nó nos mais velhos, claro, que ainda estão presos a padrões e expectativas antigos. A nova família está sendo absorvida, mas atente para o gerúndio: ela reflete o fato de que a absorção ainda está em processo, lento e gradual. Com alguns percalços inevitáveis, as famílias estão aprendendo a lidar com as novas condições, já que elas são inevitáveis. Continua dando nós, mas estamos ficando bons em desfazê-los.
Veja – Quais são alguns dos mais extremos graus de infelicidade no casamento que passaram pelo seu consultório?
Lidia – Uma das situações mais marcantes, que aconteceu mais de uma vez, é a do casal que potencializava e iluminava o que o outro tinha de melhor e de pior, oscilando o tempo todo entre momentos de extrema paixão e outros de intensa agressão, tanto verbal quanto quebrando tudo em casa. Os dois viviam ou no paraíso ou no inferno. Só não conseguiam viver na Terra. Mas o caso mais extremo de infelicidade a que atendi foi o de um casal, junto havia quarenta anos, em que ela tinha câncer terminal. A morte ia separá-los e eu tive de acompanhar essa despedida. Ele sofria absurdamente. Foi quando eu constatei que "felizes para sempre" quer dizer fim. Entendi melhor por que as pessoas têm tanto medo da entrega amorosa. Quando dá certo, um vai ter de viver esse processo de perda.
Veja – A mágoa da infidelidade pode ser superada? A marca fica para sempre ou some com o tempo?
Lidia – Depende de como é o pacto do casal. Para alguns, é uma marca que nunca vai sumir. Aliás, medo da infidelidade a gente tem sempre, independentemente de ter acontecido algo ou não. É um fantasma. Ninguém tem garantia numa relação amorosa.
Veja – Ciúme atrapalha muito?
Lidia – Bom, ciúme é inevitável, uma emoção primária, humana. Quem tem umbigo tem ciúme, e isso não tem nada a ver com posse. Ciúme está relacionado àquele momento em que você, criança, está do lado de fora do quarto de seus pais e a porta está fechada. Tem a ver com esse sentimento de exclusão. Agora, no relacionamento amoroso, o ciúme é problema do ciumento e ele não pode jogar para cima do outro.
Veja – Por que a mulher tende a perdoar mais? Como costuma ser a reação de cada um?
Lidia – A mulher percebe a relação como sendo de borracha, maleável, que pode ser esticada ou encolhida. Já para o homem, em geral, é irreparável. A primeira reação dele é querer se separar, como se o casamento fosse um cristal que, ao quebrar, não tem mais conserto. No momento seguinte, porém, os dois podem mudar de ideia.
Veja – Quando é que se percebe que um casamento acabou?
Lidia – O casamento só acaba quando o ressentimento é mais forte que a esperança de ser feliz. A pessoa tem de parar e refletir se a mágoa é realmente grande. O amor tem muitos canais pelos quais o afeto pode se expressar. O sexo é, sem dúvida, um deles, mas existem vários outros, como ternura, cumplicidade, lealdade. Não é preciso usar calcinha vermelha nem mandar o marido se vestir de marinheiro.