Eu vejo uma criança vendendo balas num semáforo. Ela me pede que eu compre um pacotinho das suas balas. Eu e a criança – dois corpos separados e distintos. Mas, ao olhar para ela, estremeço: algo em mim me faz imaginar aquilo que ela está sentindo. E então, por uma magia inexplicável, esse sentimento imaginado se aloja junto dos meus próprios sentimentos. Na verdade, desaloja meus sentimentos, pois vinha, no meu carro, com sentimentos leves e alegres, e agora esse novo sentimento se coloca no lugar deles. O que sinto não são meus sentimentos. Foram-se a leveza e a alegria que me faziam cantar. Agora, são os sentimentos daquele menino que estão dentro de mim. Meu corpo sofre uma transformação: ele não é mais limitado pela pele que o cobre. Expande-se. Ele está agora ligado a outro corpo que passa a ser parte dele mesmo. Isso não acontece nem por decisão racional, nem por convicção religiosa, nem por um mandamento ético. É o jeito natural de ser do meu próprio corpo, movido pela solidariedade. Acho que esse é o sentido do dito de Jesus de que temos de amar o próximo como amamos a nós mesmos.
A solidariedade é a forma visível do amor. Pela magia do sentimento de solidariedade, meu corpo passa a ser morada do outro. É assim que acontece a bondade, por intermédio da empatia, da capacidade de se colocar no lugar do outro. […] “O menino me olhou com olhos suplicantes. E, de repente, eu era um menino que olhava com os suplicantes…”.
Trecho de “É Assim que acontece a bondade” – Do livro: As melhores crônicas de Rubem Alves